terça-feira, 6 de maio de 2014

Senhora

Sob o tecido cinza e macio vê-se a forma rotunda que gera vida.
Quantas lágrimas, sorrisos, palavras de sim e de não,  saíram daquela mulher?
Os passos lentos e curtos arrastam o peso dos filhos, e netos, e bisnetos, e encontrados, e agregados.

Teria aquele ventre, parido ou partido bons corações?
Noites mal dormidas, almoços feitos, louças lavadas, roupas passadas, chinelos esquentados, banhos dados, dores abafadas, medos superados, orgulhos engolidos, trabalhos multiplicados, sonhos renunciados... o poder do ventre, da madre, da honra, da resignação.
Nas rugas, tantos abraços! Nas mãos, as sombras da árdua lida, dos sustentos, dos amparos, das consolações.
A profundeza de ser humana, a aflição de dar a mão ao tempo e caminhar, adiante, sem opção, sem considerar parar.
Os cabelos já não podem ser longos, nem negros, nem soltos.
Às vestes já se obriga a sobriedade, a "des-cor", a apatia.
O rosado da face já não deve ser posto e a vida nos lábios, tampouco.
Do sorriso impecável, pouco se vê. Quais os disfarces do que a comove?
Olho, olho, olho, de novo, olho e vejo.
Tantos segredos guardados!
No fundo do olhar, tanta história!
O ventre saliente, os braços vazios, o peito em descompasso, a pele desmedrada, os dias vencidos já sem tanto amanhã.
Não mais companheiro, não mais gritaria, não mais agonia.
O cheiro do bolo, o beijo na testa, o crochê, as flores do jardim, o regador, o pôr do sol.
A novela, o tai chi, o chá, o silêncio, talvez um cão, solidão.
Agora, Senhora.